Para comemorar os seus 20 anos, a revista Visão convida-nos a desfrutar da versão de José Luis Peixoto d'Os Lusiadas. O escritor desponibilizou um excerto do Canto I (que copiei abaixo). Um canto por semana sera lançado na revista Visão numa totalidade de 10 semanas. Gostei muito!
CANTO I
As armas e os barões assinalados, etc? Calma, calma. Mais devagar.
Sem tempo, as ideias não querem aparecer.
De certeza absoluta que o poeta conhecia esta verdade simples. As palavras do seu grande poema transportam muito tempo, muita história e muitas histórias. Talvez fosse por isso que o poeta se dava com gente entendida no tamanho do tempo: navegadores, reis e deuses.
Imagine-se.
Escrevo sobre aquilo que o poeta escreveu e, ao fazê-lo, escrevo sobre um assunto de completa diferença, outro assunto mesmo. Se as palavras do poeta são um reflexo, as minhas são reflexo de um reflexo e a sua imprecisão é garantida.
Talvez por isso, creio-me capaz de pedir inspiração com a mesma força às ninfas do Tejo. Imagino-as diferentes, aposto. Dou-lhes rostos diferentes, outras caras, outros descaramentos, mas rogo-lhes com o mesmo fervor pela mesma habilidade grandíloqua e corrente.
Não estou ainda no passado, estou na crueza deste aqui. Tudo é concreto à minha volta. Enquanto que a voz do poeta se fixou na solene perfeição decassilábica, a minha voz gasta-se na indecisão da garganta, espécie de adolescência perpétua, mudança ridícula de voz, grave e aguda, grave e cana rachada.
Não procuro desculpas, ó ninfas do Tejo. Procuro adjectivos.
Na minha condição, sigo o poeta. Irá sempre faltar-me sê-lo. Entre mim e ele, a distância.
E, no entanto, por vezes e talvez por acidente, também nos aproximamos.
Nada é apenas uma coisa, nem sequer o número um, o canto um, a estância um. As armas e os barões assinalados, take dois.
Tágides do Tejo, ninfas da ninfetice total, apesar de mais velhas, mais maduras, emprestem-me ainda um resto do vosso ninfetismo para espalhar um pouco mais, mesmo que não seja por toda a parte, os feitos daqueles portugueses que navegaram por oceanos inéditos e, também, o valor daqueles reis desse mesmo Portugal, que o fizeram sinónimo de fé e o esticaram pelo mundo.
E que, pelo menos, não se fique a pensar que Taprobana é nome de avó antiga: Dona Taprobana, Ti Maria Taprobana. Não. Antes que sejam sugeridos outros delírios, é importante que fique assente: Taprobana era o antigo nome da ilha de Ceilão, metaforicamente significava o fim do mundo. Para explicação mais detalhada, é favor consultar a internet.
Aqueles de quem o poema épico fala, aqueles que espero ser capaz de referir também nas linhas que se seguem, passaram ainda além da Taprobana.
Se apenas mostrasse modéstia, a realidade seria desproporcional.
Hoje, ao escrever estas palavras, há uma colecção de assuntos que domino com mais segurança do que o próprio poeta. Tenho a vantagem do tempo que passou. Esse é o caso das referências a Dom Sebastião (Lisboa, 20 de janeiro de 1554 - Alcácer-Quibir, 4 de agosto de 1578). Não possuo os detalhes do seu último dia, mas avalio que a dedicatória do poeta, versos e versos, se revelou exagerada em muitos dos atributos que lhe reconhece. A confessa incapacidade de cantá-lo através da sua poesia é inflação do monarca e deficit do poeta.
Nos jornais de hoje, já se sabe o resultado dos arremedos do rei. O entusiasmo de sua majestade trouxe uma dinastia de mágoa. Nesse conhecimento, não posso garantir que o poeta continuasse a dedicar-lhe uma obra tão importante.
Ou talvez sim. Ou talvez não houvesse outro nos séculos deste país que mais o merecesse.
Creio que era um dia normal para os deuses.
O Olimpo estava pleno de luz, mas qual era a sua forma? Talvez os deuses se movessem apenas na luz, talvez o chão fosse uma espécie de neblina luminosa. Nesse caso, é bem provável que o Olimpo fosse o lugar dos sonhos. Tanto dos nocturnos, como das ilusões em vigília. Apesar da sua originalidade, esse também é um lugar dos mamíferos humanos.
Sem psicologia, a biologia é botânica.
Imagino Júpiter de barba, cabelo de caracóis largos, tronco nu.
Imagino Baco com a cara limpa, coroa de parras e cachos de uvas, corpo redondo e flácido.
Imagino Vénus com feições miúdas, tão linda, o tom certo de palidez, cabelos longos e brilhantes.
Imagino Marte com músculos eficazes e rosto ligeiramente triste.
Como numa reunião de condomínio ou num conselho de ministros, Júpiter lançou-se num longo discurso que já trazia preparado de casa. Percebia-se que tinha gosto em ouvir-se a si próprio. Nele, elogiou os navegadores portugueses, dando apreço aos seus trabalhos, à sua sobrevivência, defendendo a sua defesa, protegendo a sua protecção.
Baco, sóbrio, tinha uma perspectiva diferente pronta a ser comunicada. Proprietário de uma certa fama no oriente, temia que os portugueses ao chegarem lá pudessem roubar-lha, deixando-lhe apenas o amargo esquecimento. Cabe a cada um cuidar daquilo que é seu. Exaltado, Baco atacou a defesa dos portugueses, desprotegeu a sua protecção.
Chegou então a vez de Vénus, essa menina. Com voz delicada, véu ao vento, afirmou que os lusitanos portugueses lusíadas lhe faziam lembrar os seus gentis romanos. Falantes de uma língua rente ao latim, levariam o amor para onde quer que chegassem. Ela mesma, envolta em delicadeza, garantiria essa nobreza de sentimentos.
Por uma questão de tom, seria muito custoso a um brutamontes da estirpe de Baco contradizer uma donzela tão vaporosa. Mais difícil ainda quando Marte, incentivado por um amor antigo, fez o céu tremer com uma pancada do seu bastão. Levantando a viseira do elmo, exclamou palavras rijas, voz grossa, concordando com Vénus e encorajando Júpiter a não desistir das suas primeiras intenções. Esse recuo seria uma mostra de fragilidade. Ao mesmo tempo, as razões de Baco pareceram-lhe suspeitas, o próprio Baco pareceu-lhe suspeito.
Resultado final: 3 - 1.
Sem apito, Júpiter apitou o final da partida. Sem martelo, pumba, declarou encerrada a reunião.
Fonte: http://www.joseluispeixoto.net/76546.html
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