Vou avisando já, com muita antecedência (assim o espero) que, no que toca a herança o melhor é não esperares demasiado.
Não prevejo fazer uma grande fortuna nem ir acumulando casas de praia
e grandes carros. Jóias? São poucas, mas com significado, como convém. A
maior parte delas do espólio das bisavós e avós, todas elas com a sua
história, de que te falarei mais lá à frente.
Deixo-te, ou irei deixar-te, livros. Muitos livros. Alguns deles
herdados, outros oferecidos. Juntei parte de mesadas para comprar uma
série deles. Há uns quantos com a capa dobrada, à força de serem lidos
com demasiada descontração, outros com as páginas amareladas pelo tempo e
ainda mais outros que nunca deixaram de cheirar a novo. De alguns
gostei tanto que chorei, com outros fui acumulando conhecimentos e
outros só me ajudaram a passar o tempo. Se olhares para a nossa estante
verás uma colecção algo esquizofrénica, com livros de muitos géneros.
Não sou indecisa, gosto é de variedade. E é esta variedade que quero que
chegue até ti.
Para que me procures nas mesmas linhas que um dia li, para que me
encontres inesperadamente dentro delas. Para que te questiones sobre o
porquê de ter sublinhado aquela passagem ou por que será que aquele
livro existe em três línguas e eu os li a todos (para que a mesma
mestria me tocasse com diferentes sonoridades e as palavras se
eternizassem numa amálgama de memórias).
Gostava que lesses os meus livros e, a partir deles, criasses a tua
biblioteca, juntando depois as tuas escolhas, provavelmente tão
diferentes das minhas. Que mais tarde te venhas a sentar com os teus
filhos no colo e leias com eles, como fazemos – e gostas tanto. Quem
sabe se daqui a duas ou três gerações não vai haver um nosso descendente
a pegar num dos meus livros e a perguntar-se quem era aquela pessoa que
tinha a mania de assinar a primeira página de todos eles.
Pode não ser muito, mas é isso que te deixo – os meus companheiros de
noites frias e dias quentes, de tardes de vento na praia, de viagens
intermináveis e viagens que acabaram cedo de mais, porque queria mesmo
terminar aquele capítulo.
São histórias que me ensinaram, que me fizeram viver vidas incríveis,
que me despertaram a paixão pela escrita e me deixaram a desejar um dia
conseguir escrever assim.
Mas a minha obra-prima já está escrita e és tu. E perdoa-me por só
escrever, ainda que com muito amor, os primeiros capítulos da tua
existência. Os restantes já são contigo. Perdoa-me, também, por não
poder estar ao teu lado para sempre, mas a vida é mesmo assim.
Quando um dia já cá não estiver e sentires saudades minhas, abre um
dos meus livros, meu amor. Fecha os olhos e lembra-te das minhas
palavras sussurradas ao ouvido. Porque eu vou sempre estar ao teu lado.
Seja nos olhos grandes dos teus filhos, seja nas músicas que um dia lhes
vais cantar e que aprendeste comigo, seja nos livros que ganham pó na
estante da sala.
Mas promete-me que não ficas triste e que acrescentas um ponto ao
conto da tua vida. Todos os dias um bocadinho, para que a tua história
seja sempre interessante, até ao último capítulo.
Por Marta Coelho, para Up To Kids®
Fonte: http://uptokids.pt/cronicas/a-heranca-que-te-irei-deixar/
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