quarta-feira, 22 de julho de 2015

A herança que te irei deixar- Marta Coelho


Vou avisando já, com muita antecedência (assim o espero) que, no que toca a herança o melhor é não esperares demasiado.
Não prevejo fazer uma grande fortuna nem ir acumulando casas de praia e grandes carros. Jóias? São poucas, mas com significado, como convém. A maior parte delas do espólio das bisavós e avós, todas elas com a sua história, de que te falarei mais lá à frente.
Deixo-te, ou irei deixar-te, livros. Muitos livros. Alguns deles herdados, outros oferecidos. Juntei parte de mesadas para comprar uma série deles. Há uns quantos com a capa dobrada, à força de serem lidos com demasiada descontração, outros com as páginas amareladas pelo tempo e ainda mais outros que nunca deixaram de cheirar a novo. De alguns gostei tanto que chorei, com outros fui acumulando conhecimentos e outros só me ajudaram a passar o tempo. Se olhares para a nossa estante verás uma colecção algo esquizofrénica, com livros de muitos géneros. Não sou indecisa, gosto é de variedade. E é esta variedade que quero que chegue até ti.
Para que me procures nas mesmas linhas que um dia li, para que me encontres inesperadamente dentro delas. Para que te questiones sobre o porquê de ter sublinhado aquela passagem ou por que será que aquele livro existe em três línguas e eu os li a todos (para que a mesma mestria me tocasse com diferentes sonoridades e as palavras se eternizassem numa amálgama de memórias).
Gostava que lesses os meus livros e, a partir deles, criasses a tua biblioteca, juntando depois as tuas escolhas, provavelmente tão diferentes das minhas. Que mais tarde te venhas a sentar com os teus filhos no colo e leias com eles, como fazemos – e gostas tanto. Quem sabe se daqui a duas ou três gerações não vai haver um nosso descendente a pegar num dos meus livros e a perguntar-se quem era aquela pessoa que tinha a mania de assinar a primeira página de todos eles.
Pode não ser muito, mas é isso que te deixo – os meus companheiros de noites frias e dias quentes, de tardes de vento na praia, de viagens intermináveis e viagens que acabaram cedo de mais, porque queria mesmo terminar aquele capítulo.
São histórias que me ensinaram, que me fizeram viver vidas incríveis, que me despertaram a paixão pela escrita e me deixaram a desejar um dia conseguir escrever assim.
Mas a minha obra-prima já está escrita e és tu. E perdoa-me por só escrever, ainda que com muito amor, os primeiros capítulos da tua existência. Os restantes já são contigo. Perdoa-me, também, por não poder estar ao teu lado para sempre, mas a vida é mesmo assim.
Quando um dia já cá não estiver e sentires saudades minhas, abre um dos meus livros, meu amor. Fecha os olhos e lembra-te das minhas palavras sussurradas ao ouvido. Porque eu vou sempre estar ao teu lado. Seja nos olhos grandes dos teus filhos, seja nas músicas que um dia lhes vais cantar e que aprendeste comigo, seja nos livros que ganham pó na estante da sala.
Mas promete-me que não ficas triste e que acrescentas um ponto ao conto da tua vida. Todos os dias um bocadinho, para que a tua história seja sempre interessante, até ao último capítulo.

Por Marta Coelho, para Up To Kids®

Fonte: http://uptokids.pt/cronicas/a-heranca-que-te-irei-deixar/

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